A Ordem dos Advogados emitiu um parecer que uniformiza todas as questões suscitadas pelos vários Conselhos Regionais da Ordem dos Advogados e por Advogados, relativas à eventual incompatibilidade entre o estágio de Advocacia previsto no Estatuto da Ordem dos Advogados e os denominados estágios profissionais.
Segundo o parecer, o recurso a medidas legalmente previstas de apoio à realização de estágios profissionais é conciliável com a realização do estágio de Advocacia estatutariamente previsto, dado que não colide com os deveres a que, nesse âmbito, se encontram adstritos os patronos e os advogados estagiários, e a compensação financeira (incentivo do Estado) não influencia a qualidade, os objetivos e os fins do estágio de Advocacia estatutariamente previsto.
Já no que concerne a estágios profissionais realizados com outras entidades (que não sejam advogados ou sociedades de advogados), “tais estágios não correspondem ao estágio de Advocacia legalmente previsto, não podendo ser considerados, nem contando, para quaisquer efeitos, como estágio de Advocacia realizado ao abrigo do Estatuto da Ordem dos Advogados, uma vez que este estágio só pode ser realizado perante Advogado/Advogada”.
O Conselho Geral da Ordem dos Advogados termina o parecer informando que os advogados estagiários, no decurso dos respetivos estágios, podem requerer, com o apoio dos seus patronos, os incentivos financeiros concedidos pelo Estado para a realização de estágios profissionais, desde que, cumulativamente, estejam preenchidos todos os requisitos legalmente previstos para acesso aos incentivos estatais e seja segurado que todos os montantes pagos (ao abrigo desses incentivos) sejam canalizados para o advogado estagiário.
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Parecer da Ordem dos Advogados
Requerente – Exma. Senhora Bastonária
Finalidade – Uniformização de Procedimentos
Relator – Dr.ª Carla Morgado
Parecer
I. Objeto
A Exma. Senhora Bastonária ordenou que se remetessem à signatária, para elaboração de Parecer uniformizador, à luz da Portaria n.º 149-B/2014, de 24 de junho, todas as questões suscitadas pelos vários Conselhos Regionais da Ordem dos Advogados e por Advogados/as, relativas à eventual incompatibilidade entre o estágio de Advocacia previsto no Estatuto da Ordem dos Advogados e os denominados estágios profissionais, previstos na supra citada norma.
II. Do Enquadramento Estatutário
1. A matéria relativa ao estágio de Advocacia encontra-se regulada nos artigos 191.º a 196.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, e no Regulamento Nacional de Estágio.
2. No que à questão sub judice releva e para uma melhor análise, transcrevemos, infra, o conteúdo dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, e 196.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados:
“Artigo 191.º
Objetivos do estágio e sua orientação
1 – O pleno e autónomo exercício da advocacia depende de um tirocínio sob orientação da Ordem dos Advogados, destinado a habilitar e certificar publicamente que o candidato obteve formação técnico-profissional e deontológica adequada ao início da atividade e cumpriu os demais requisitos impostos pelo presente Estatuto e regulamentos para a aquisição do título de advogado.
2 – O acesso ao estágio, a transmissão dos conhecimentos de natureza técnico-profissional e deontológica e o inerente sistema de avaliação são assegurados pelos serviços de estágio da Ordem dos Advogados, nos termos regulamentares.
Artigo 192.º
Patronos e requisitos para aceitação do tirocínio
1 – Os patronos desempenham um papel fundamental ao longo de todo o período de estágio, sendo a sua função iniciar e preparar os estagiários para o exercício pleno da advocacia.
2 – Só podem aceitar a direção do estágio, como patronos, os advogados com, pelo menos, cinco anos de exercício efetivo de profissão, que não tenham sofrido punição disciplinar superior à de multa.
3 – Cada patrono apenas pode ter sob sua orientação, em simultâneo, um estagiário nomeado pela Ordem dos Advogados, não podendo o número total de estagiários por patrono exceder o fixado na regulamentação do estágio.
4 – O advogado nomeado pela Ordem dos Advogados para exercer as funções de patrono apenas pode escusar-se quando ocorra motivo fundamentado, que deve ser livremente apreciado pelo conselho regional competente, cabendo recurso de tal decisão para o conselho geral.
5 – Incumbe ao patrono:
a) Acompanhar a preparação dos seus estagiários;
b) Assegurar as intervenções processuais obrigatórias;
c) Providenciar para que os estagiários cumpram os demais deveres do estágio;
d) Elaborar um relatório final do estágio de cada estagiário, que deve ser apresentado diretamente ao competente júri de avaliação.
Artigo 193.º
Aplicabilidade do Estatuto
Os advogados estagiários ficam, desde a sua inscrição, obrigados ao cumprimento do presente Estatuto e demais regulamentos.
Artigo 196.º
Competência e deveres dos advogados estagiários
1 – Concluída a primeira fase do estágio, o advogado estagiário pode, sempre sob orientação do patrono, praticar os seguintes atos próprios da profissão:
a) Todos os atos da competência dos solicitadores;
b) Exercer a consulta jurídica.
2 – O advogado estagiário pode ainda praticar os atos próprios da profissão não incluídos no número anterior, desde que efetivamente acompanhado pelo respetivo patrono.
3 – O advogado estagiário deve indicar, em qualquer ato em que intervenha, apenas e sempre esta sua qualidade profissional.
4 – São deveres do advogado estagiário durante todo o seu período de estágio e formação:
a) Observar escrupulosamente as regras, condições e limitações admissíveis na utilização do escritório do patrono;
b) Guardar respeito e lealdade para com o patrono;
c) Submeter-se aos planos de estágio que vierem a ser definidos pelo patrono;
d) Colaborar com o patrono sempre que este o solicite e efetuar os trabalhos que lhe sejam determinados, desde que se revelem compatíveis com a atividade do estágio;
e) Colaborar com empenho, zelo e competência em todas as atividades, trabalhos e ações de formação que venha a frequentar no âmbito dos programas de estágio;
f) Guardar sigilo profissional;
g) Comunicar ao serviço de estágio competente qualquer facto que possa condicionar ou limitar o pleno cumprimento das normas estatutárias e regulamentares inerentes ao estágio;
h) Cumprir em plenitude todas as demais obrigações deontológicas e regulamentares no exercício da atividade profissional.
5 – No momento da inscrição, o estagiário deve apresentar comprovativo de subscrição da apólice de seguro de grupo disponibilizada pela Ordem dos Advogados, ou contratada por si, relativa a:
a) Seguro de acidentes pessoais, que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do estágio;
b) Seguro de responsabilidade civil profissional, que cubra, durante a realização do estágio e enquanto a respetiva inscrição se mantiver ativa, os riscos inerentes ao desempenho das tarefas que enquanto advogado estagiário lhe forem atribuídas, conforme o estabelecido na apólice respetiva, renovando-o sempre que necessário até à sua conclusão.”
III. Do Enquadramento Legal Aplicável
No que ao caso em apreço respeita, importa reter que a Portaria n.º 149-B/2014, de 24 de Junho, procedeu à alteração do artigo 1.º, da Portaria n.º 204-B/2013, de 18 de Junho, cujo número 5., passou a ter a seguinte redação:
“Artigo 1.º
[…]
1 – […].
2 – […].
3 – […].
4 – […].
5 – Esta medida poderá ser utilizada no desenvolvimento de estágios para acesso a profissões reguladas, sem prejuízo de decisões próprias das Associações Públicas Profissionais.” (sublinhado nosso)
IV. Breve Análise
1. Tendo em conta as disposições legais aplicáveis, cumprirá aferir se um/a Advogado/a estagiário/a que celebra um contrato de estágio profissional com um/a Advogado/a ou com uma sociedade de Advogados, se encontra numa situação ilegal ou irregular, face ao que se determina, estatutariamente, no que respeita aos objetivos, fundamentos e fins do estágio.
2. Parece-nos, pela leitura e análise da legislação supra transcrita, que o estágio de Advocacia não pode ser considerado inconciliável com os estágios profissionais legalmente previstos e subsidiados pelo Estado, não existindo quaisquer irregularidades, ilegalidades ou incompatibilidades nessa conciliação:
3. Em primeiro lugar, e como decorre do já supra exposto, a Portaria n.º 149.º-B/2014, de 24 de Julho, procedeu à alteração do artigo 1.º, da Portaria n.º 204-B/2013, de 18 de Junho, consagrando expressamente a possibilidade de acesso aos estágios profissionais nas profissões reguladas, e deixando às Associações Públicas Profissionais a possibilidade de admitirem esse acesso, permitindo assim, in casu, à Ordem dos Advogados, tomar a posição que entenda adequada sobre a matéria, determinando quais os casos em que considera existir possibilidade de conciliação entre o estágio de Advocacia e os estágios profissionais financiados pelo Estado.
4. Em segundo lugar, e não menos importante, o contrato de estágio profissional é celebrado entre o/ patrono/a e o/ estagiário/a e não entre este/a e qualquer organismo ou entidade público(a).
5. A isto acresce que as relações a estabelecer com o/a organismo ou entidade público(a) serão asseguradas apenas pelo/a patrono/a (ou, nos casos aplicáveis pela estrutura societária a que o/a patrono/a pertença) e limitar-se-ão a tratar das operações logísticas necessárias à concessão do apoio financeiro ao estágio a realizar pelo/a Advogado/ estagiário/a.
6. Não se vislumbrando que o incentivo financeiro aplicável aos estágios profissionais ponha em causa os deveres ético-deontológicos a que se encontram adstritos os/as Advogados/as estagiários/as e os/as Advogados/as que assumem a direção dos estágios e muito menos que tal incentivo financeiro ponha em causa os objetivos, fundamentos e fins do estágio de Advocacia estatutariamente previsto.
V. Da Analogia com os Contratos de Trabalho Celebrados entre Advogados/as e Sociedades Comerciais ou outras Entidades vs Independência e Autonomia Técnicas
1. No atual contexto, a realidade dos denominados Advogados/as de empresa não pode deixar de nos trazer um contributo analógico para a questão em apreço.
2. Os denominados Advogados/as de empresa prestam os seus serviços jurídicos, consubstanciados em atos próprios de Advogados, nos termos previstos na Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, com total independência técnica, mas em regime de subordinação funcional, através da celebração de contratos de trabalho com as sociedades comerciais ou entidades a quem prestam os seus serviços.
3. Como é inegável, uma vez que tal atividade subordinada não se encontra proibida estatutariamente, tais Advogados/as continuam sujeitos a todos os deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos Advogados e restante legislação complementar, incluindo o dever de pagar quotas e de manterem, em qualquer caso, a sua independência e autonomia técnicas, sendo que o contrato de trabalho que os vincula a uma determinada entidade não lhes retira independência e muito menos os exime do cumprimento dos deveres estatutários, de carácter ético-deontológico, a que se encontram adstritos.
4. Tal o que acontece, mutatis mutandis, no caso dos estagiários que desenvolvem o seu tirocínio ao abrigo das normas estatutariamente previstas, mas com recurso, pelos/as patronos/as, a apoio financeiro do Estado, através das denominadas “bolsas de estágio”.
VI. Do Estágio Efetuado com Advogados/as ou em Sociedades de Advogados
1. No que respeita ao estágio a realizar por Advogado/a estagiário/a com um Advogado/a em nome individual, parece inequívoco não existir qualquer impedimento à conjugação do estágio de Advocacia com o denominado estágio profissional financiado pelo Estado, já que este não colide com os princípios, fundamentos ou objetivos daquele, nem com os deveres estatutários a que se encontram adstritos, quer os/as Advogados/as estagiários/as, quer os/as Advogados/as que aceitam a direção do tirocínio, permitindo, apenas, aos/às Advogados/as estagiários, se preencherem todos os requisitos legalmente previstos, beneficiarem de uma denominada “bolsa de estágio”, permitindo-lhes obter alguma autonomia financeira no decurso do estágio de Advocacia.
2. Importará, agora, analisar os casos dos estágios a realizar por Advogado/a estagiário/a com uma Sociedade de Advogados: nestes casos, entendemos que também não se verifica qualquer impedimento à celebração de tais estágios, uma vez que, por força das normas estatutárias e regulamentares em vigor, o/a Advogado/a estagiário/a tem sempre que ter como patrono/a um/a Advogado/a em nome individual a dirigir o seu estágio, o que corresponde à figura do “orientador do estágio”, na legislação aplicável em matéria de concessão de “bolsas de estágio”, pelo que não nos repugna que seja a estrutura societária na qual o/a patrono/a se integra, a assumir a relação relativa ao incentivo financeiro de que o/a estagiário/a é beneficiário/a, tendo em conta que tal factualidade em nada altera a relação, obrigatória e necessária, do estagiário/a com o/a seu/sua patrono/a.
VII. Da Realização de Estágios com Outras Entidades
Já no que respeita à realização de estágios, por Advogados/as estagiários/as, com outras entidades que não sejam Advogados/as ou sociedades de Advogados, nada impede que tais entidades recorram aos incentivos financeiros denominados “bolsas de estágio” ou equiparados, na certeza, porém, que tais estágios não correspondem ao estágio de Advocacia legalmente previsto, não podendo ser considerados, nem contando, para quaisquer efeitos, como estágio de Advocacia realizado ao abrigo do Estatuto da Ordem dos Advogados, uma vez que este estágio só pode ser realizado perante Advogado/Advogada, com mais de 10 (dez) anos de profissão.
VIII. Conclusões
A) Face ao que fica supra exposto, a Ordem dos Advogados entende que o recurso a medidas legalmente previstas de apoio à realização de estágios profissionais é conciliável com a realização do estágio de Advocacia estatutariamente previsto, uma vez que não colide com os deveres a que, nesse âmbito, se encontram adstritos os/as patronos/as e os/as Advogados/as estagiários/as;
B) A forma[1] da compensação financeira pela realização do estágio não influencia a qualidade, os objetivos e os fins do estágio de Advocacia estatutariamente previsto;
C) No que respeita ao estágio a realizar por Advogado/a estagiário/a com um Advogado/a em nome individual, parece inequívoco não existir qualquer impedimento à conjugação do estágio de Advocacia com o denominado estágio profissional financiado pelo Estado, já que este não colide com os princípios, fundamentos ou objetivos daquele, nem com os deveres estatutários a que se encontram adstritos, quer os/as Advogados/as estagiários/as, quer os/as Advogados/as que aceitam a direção do tirocínio;
D) Relativamente aos estágios a realizar por Advogado/a estagiário/a com Sociedades de Advogados, entendemos que também não se verifica qualquer impedimento à celebração de tais contratos de estágio, uma vez que, por força das normas estatutárias e regulamentares em vigor, o/a Advogado/a estagiário/a tem sempre que ter como patrono/a um/a Advogado/a em nome individual a dirigir o seu estágio, o que corresponde à figura do “orientador do estágio”, na legislação aplicável em matéria de concessão de “bolsas de estágio”, pelo que se admite que seja a estrutura societária na qual o/a patrono/a se integra, a assumir a relação relativa ao incentivo financeiro de que o/a estagiário/a é beneficiário/a, tendo em conta que tal factualidade em nada altera a relação, obrigatória e necessária, do estagiário/a com o/a seu/sua patrono/a.
E) Já no que respeita à realização de estágios, por Advogados/as estagiários/as, com outras entidades que não sejam Advogados/as ou sociedades de Advogados, nada impede que tais entidades recorram aos incentivos financeiros denominados “bolsas de estágio” ou equiparados, na certeza, porém, que tais estágios não correspondem ao estágio de Advocacia legalmente previsto, não podendo ser considerados, nem contando, para quaisquer efeitos, como estágio de Advocacia realizado ao abrigo do Estatuto da Ordem dos Advogados, uma vez que este estágio só pode ser realizado perante Advogado/Advogada.
F) Face a tudo o que fica exposto, entende o Conselho Geral que os Advogados/as estagiários/as, no decurso dos respetivos estágios, possam requerer, com o apoio dos seus patronos, os incentivos financeiros concedidos pelo Estado para a realização de estágios profissionais, desde que se verifique, cumulativamente, o seguinte:
a) Estarem preenchidos todos os requisitos (quer no que respeita ao estagiário, quer no que respeita ao Advogado/a que assume a direção do estágio) legalmente previstos para acesso a esses incentivos estatais;
b) Ser devidamente assegurado que todos os montantes pagos ao abrigo do incentivo sejam canalizados, assim que recebidos, para o/a Advogado/a estagiário/a que beneficia do incentivo financeiro.
Lisboa, 16 de Outubro de 2015
A Relatora
Carla Teixeira Morgado
Vogal do Conselho Geral
(1) Incentivo do Estado.
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