O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que deve ser anulado, por incapacidade acidental, o testamento outorgado por quem, no momento e devido a doença, estava incapaz de entender o sentido da sua declaração e carecia do livre exercício da sua vontade para poder dispor dos seus bens para depois da morte.
O caso
Uma mulher outorgou um testamento perante o notário quando estava internada no Instituto Português de Oncologia, instituindo uma única pessoa como herdeira universal dos seus bens.
A irmã, única herdeira da testadora, depois desta falecer recorreu a tribunal pedindo para que fosse considerado nulo e sem nenhum efeito o testamento, alegando que a irmã padecia de um tumor cerebral que lhe retirava a capacidade de entender e querer o sentido da declaração expressa no testamento, apresentando, então, sinais de demência que eram percetíveis para qualquer pessoa que com ela privasse. Afirmou ainda que a irmã não tinha a perceção do espaço ou do tempo, nem reconhecia as pessoas que a rodeavam, tinha necessidade de ajuda para realizar todas as tarefas, mesmo as mais simples como comer e lavar-se, e apresentava dificuldade em expressar-se através da linguagem e de compreender o que lhe era dito.
O tribunal declarou anulado o testamento, determinando que fossem devolvidos à herança todos os bens deixados pela testadora, decisão da qual foi interposto recurso para o TRL.
Apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRL negou provimento ao recurso ao decidir que deve ser anulado, por incapacidade acidental, o testamento outorgado por quem, no momento e devido a doença, estava incapaz de entender o sentido da sua declaração e carecia do livre exercício da sua vontade para poder dispor dos seus bens para depois da morte.
A lei estabelece a anulabilidade do testamento celebrado com incapacidade acidental, por quem se encontrava incapacitado de entender e querer o sentido da declaração efetuada ou que, por qualquer causa, ainda que transitória, não tinha o livre exercício da sua vontade para poder dispor dos seus bens para depois da morte, no momento em que a declaração negocial foi prestada.
Norma esta que pode abranger situações acidentais, esporádicas e transitórias, como surtos psicóticos momentâneos, que diminuam momentaneamente o discernimento e o livre exercício da vontade de dispor. Pode ainda abarcar situações permanentes, como, por exemplo, uma doença suscetível de afetar a capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e que seja passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que o testador pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente.
Ainda assim, é necessário que essa incapacidade se verifique no momento em que é feito o testamento, devendo a incapacidade acidental ser sempre aferida nesse momento e incumbindo ao interessado na invalidade o ónus da prova dos factos reveladores dessa incapacidade acidental.
Até porque uma pessoa pode ter alguma lesão cerebral ou doença mental e esta não afetar o seu discernimento para querer e entender o alcance do ato que está a praticar, não sendo a incapacidade acidental um efeito automático de qualquer doença mental, sendo necessário ter em conta as circunstâncias do caso concreto e que a doença em causa tenha toldado a capacidade do testador de compreender o alcance da disposição testamentária que fez.
O que a lei não exige é que essa incapacidade seja notória ou conhecida do beneficiário do testamento para que o mesmo possa ser anulado, desde logo por se tratar de um ato unilateral, que não carece de aceitação para produzir os seus efeitos.
No caso concreto, estando provado que o testamento foi outorgado no Instituto Português de Oncologia onde a testadora estava internada, que esta assinou o documento apondo impressão digital do seu indicador direito, por não se encontrar em condições de assinar, que ela há muito não tinha perceção do espaço e do tempo, apenas ocasionalmente reconhecendo alguns familiares, que tinha necessidade de ajuda para realizar todas as tarefas mesmo as mais simples como comer e lavar-se, e que apresentava dificuldade em expressar-se através da linguagem e de compreender o que lhe era dito, situação que se verificava na data em que foi outorgado o testamento e que se prolongou até à sua morte, é de considerar provada a existência da incapacidade acidental e a consequente decisão de anulação do testamento.
Via | LexPoint
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 4331/16.0T8LSB.L1-7, de 20 de dezembro de 2018
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