O Tribunal da Relação do Porto (TRP) decidiu que é gravemente violador do interesse moral do ex-cônjuge, justificando a privação do uso do apelido, a situação do cônjuge que se divorciou e que, volvida mais de uma década sobre o divórcio e autorização para que use o apelido do então consorte, atribui esse apelido ao filho entretanto nascido do novo casamento com outrem, permitindo ainda que o novo cônjuge adote de igual modo o apelido do anterior.
O caso
Após o divórcio, decretado em 2003, o marido autorizou que a ex-mulher mantivesse o seu apelido por razões profissionais. Em 2004 ela voltou a casar, tendo o seu novo marido, em 2013, alterado o seu nome, com o consentimento dela, adotando o apelido que ela recebera do seu ex-marido. Logo após essa alteração, o casal registou o seu filho, que assim ficou com o mesmo apelido.
Alegando que, ao autorizar a manutenção do seu apelido à ex-mulher, não desejara ou sequer equacionara que o mesmo pudesse vir a ser transmitido ao seu atual marido e ao filho comum destes, o ex-marido recorreu a tribunal, pedindo para que ela fosse privada do uso do seu apelido.
O tribunal julgou a ação procedente, ordenando o cancelamento do registo e averbamentos do apelido em relação à ex-mulher, ao seu atual marido e ao filho de ambos, decisão da qual foi interposto recurso para o TRP.
Apreciação do Tribunal da Relação do Porto
O TRP julgou parcialmente procedente o recurso, julgando a sentença nula no segmento em que ordenara o cancelamento do registo e averbamentos do apelido nos nomes do novo marido e do filho e confirmando-a na parte em que ordenara esse cancelamento em relação à ex-mulher.
Entendeu o TRP que é nula por excesso de pronúncia a sentença que decide a privação do apelido que integra o nome de terceiros que não são parte na ação.
Ao procedimento judicial de privação do direito ao uso dos apelidos do ex-cônjuge aplicam-se as regras relativas aos processos de jurisdição voluntária. Mas o julgamento de acordo com critérios de conveniência e de oportunidade, previstos para a jurisdição voluntária, não afasta as regras processuais e substantivas basilares, como as que respeitam, desde logo, à natureza do objeto, à legitimidade das partes e ao exercício do contraditório. Como tal, não pode o tribunal, sob pena de incorrer em excesso de pronúncia, privar terceiros que não são parte na ação do apelido em causa, quando nem sequer o autor tenha formulado um pedido nesse sentido.
Quanto à ex-mulher, o TRP decidiu ser gravemente violador do interesse moral do ex-cônjuge, justificando a privação do uso do apelido, a situação do cônjuge que se divorcie e que, volvida mais de uma década sobre o divórcio e autorização para que use o apelido do então consorte, atribui esse apelido ao filho entretanto nascido do novo casamento com outrem, permitindo ainda que o novo cônjuge adote de igual modo o apelido do anterior.
O consentimento prestado pelo ex-cônjuge traduz-se numa alienação ou transmissão da sua própria identidade, que apenas se justifica porque da história pessoal do ex-cônjuge que deseja manter o apelido do outro fez parte, num dado momento, o outro, a família do outro e a família que ambos construíram. O cônjuge que pretende manter o apelido do outro pode nisso ter interesse pessoal, social ou profissional, desde que tal interesse seja ponderoso.
Estando em causa um apelido que as duas partes atribuíram aos filhos que têm em comum, tendo, ainda, a requerida o atribuído ao filho que nasceu do matrimónio ocorrido depois do divórcio, não é apenas o interesse pessoal de cada um que está em causa, mas também o seu interesse relacional, enquanto elementos que foram de uma família que constituíram anteriormente, mas também de membros de novas famílias que depois daquela primeira vieram a constituir-se.
É que a situação assim criada pode ter dois efeitos adversos: por um lado, a criação de uma situação de equívoco social sobre a paternidade da criança e, por outro, sobre qual a posição ou relação do novo cônjuge relativamente ao anterior. Situação que será ainda mais ofensiva do interesse moral do requerente e da sua família quando dela resulte a aparência de uma família única, com seis membros, em prejuízo da realidade existente de várias famílias.
Resultando do uso do apelido que permaneceu do matrimónio anterior a possibilidade de imprecisão e obscuridade quanto à pertença dos indivíduos a determinada ou determinadas famílias ou de exatidão quanto à existência ou inexistência de parentesco entre elas, é também o interesse público que subjaz à regulamentação do nome que fica colocado em crise. Razão pela qual considerou o TRP legítima a pretensão formulada pelo requerente, para que a sua ex-mulher fosse privada do uso do seu apelido.
Via | LexPoint
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 5386/17.5T8MAI.P1, de 4 de fevereiro de 2019
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